Um cientista, uma ideia, uma pesquisa e muita burocracia pelo caminho. Ano após ano, os exemplos de dificuldades operacionais se multiplicam nos laboratórios científicos pelo Brasil, impedindo que pesquisadores promovam avanços que poderiam alçar o país à vanguarda da inovação. Esses obstáculos desestimulam novos e veteranos estudiosos, que acabam optando pelo êxodo científico, gerando atrasos significativos no desenvolvimento nacional. Com a posse de Michel Temer na Presidência, o Ministério da Ciência se fundiu com a pasta das Comunicações, levando pelo menos 13 associações científicas a publicar uma carta de repúdio à medida, reclamando de rebaixamento. O TEMPO trará, nas próximas semanas, uma série de reportagens abordando um tema negligenciado a preço alto: a burocracia na prática da ciência no Brasil.
A burocracia é determinada no dicionário como o “excesso de papelada e de exigências que tornam morosos os serviços prestados pelos órgãos públicos e privados”. Essa definição reflete como o problema está praticamente institucionalizado no país, e exemplos não faltam.
A atual epidemia de dengue e zika são casos emblemáticos desse atraso, pois o país já poderia ter desenvolvido uma vacina contra os males do Aedes aegypti, o que vem sendo feito por institutos de pesquisa de outros países, como Estados Unidos e Índia. Embora existam, os estudos com esse objetivo no Brasil andam a passos lentos. E na corrida pelo desenvolvimento científico não existe segundo lugar: uma nova descoberta pode dar fim à pesquisa de uma vida inteira.
Um levantamento realizado pelo Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 2010, e repetido em 2014 com 165 cientistas de 35 instituições científicas de 13 Estados, mediu o problema e mostrou que as alfândegas são um dos principais gargalos. O trabalho apontou que 99% dos cientistas precisam importar materiais para suas pesquisas regularmente (células, equipamentos, micro-organismos e reagentes, por exemplo). Mas, como 76% deles já perderam encomendas devido ao tempo excessivamente longo de retenção das importações, não é de se espantar que 98% tenham deixado de realizar alguma pesquisa (ou parte dela) por causa desses problemas.
Os impostos também despontam como outra barreira. O valor final do produto pode alcançar até três vezes o que é pago por cientistas nos Estados Unidos e na Europa. Em países em desenvolvimento, os pesquisadores chegam a pagar 70% mais do que seus colegas de nações desenvolvidas para ter suprimentos idênticos, de acordo com uma pesquisa realizada pela revista científica “Nature”.
O mais irônico, segundo a chefe do laboratório nacional de células-tronco embrionárias da Universidade de São Paulo (USP), Lygia da Veiga Pereira, é que essas limitações todas são impostas pelo grande financiador das pesquisas: o governo federal. “Criou-se um labirinto legal para importações que não distingue um pesquisador de um potencial contrabandista. E, assim, o governo dá um tiro no pé e no desenvolvimento científico do Brasil”.
Lygia espera há mais de um ano por uma bomba de vácuo para dar continuidade a seus estudos com células-tronco. “O governo me ‘deu’ esse dinheiro para a compra do equipamento, mas, nesse período de espera, o dólar passou de R$ 2 para R$ 4”, afirma. A cientista acredita que, se o equipamento tivesse sido liberado há um ano, custaria cerca de 30% menos.
Por isso, não basta o Brasil estar na 13ª posição entre os países com maior produção científica, conforme levantamento da Thomson Reuters. A competitividade rege a área, pois ciência, tecnologia e inovação são verdadeiros motores das economias dos países desenvolvidos.
No último ano, o Brasil atingiu sua pior posição no ranking do Relatório Global de Competitividade, divulgado pelo Fórum Econômico Mundial, chegando ao 75° lugar – uma queda inédita de 18 posições – entre as economias mais competitivas do mundo. A pior colocação, até então, tinha sido o 72º lugar de 2007. O melhor resultado foi alcançado em 2012 – 48º lugar. Em termos de inovação, o país está abaixo do México, Índia, África do Sul e Rússia, e de economias menores como Uruguai, Peru e Vietnã.
Mudança de foco. Com um doutorado nos Estados Unidos, a pesquisadora Lygia da Veiga conhece outra realidade. “Se você quer mudar seu experimento, no dia seguinte o reagente está na sua bancada. Aqui, quando isso acontece, são pelo menos dois meses”, diz. O sistema dos norte-americanos não deixa o cientista perder tempo com burocracia. “O pesquisador brasileiro tem uma carga administrativa horrível. Sua inteligência é usada mais para tentar viabilizar o projeto do que para pensar a ciência de verdade. O prejuízo é enorme. Aqui, chego a gastar um terço do meu dia lidando com questões burocráticas”, estima. Uma prática que os pesquisadores costumam usar com frequência, segundo Lygia, é aproveitar algum colega em viagem ao exterior para trazer materiais. “A ciência é zero burocrática, ela é metodológica, segue métodos; já a burocracia é um inventado”, afirma.
Fonte: Jornal O Tempo